27.9.10

Ele

Cláudia Magalhães

Ele foi, aos poucos, abrindo o seu enorme baú de vergonhas. Vinícius era o seu nome. Conheço-o desde a mais tenra idade. Crescemos juntos. No início, eu o achava destemido, inteligente, ousado, mas, com o passar dos anos, ele foi se revelando um ser repugnante, capaz das piores baixezas para conseguir o que queria. Aos 22 anos, nos formamos em jornalismo e começamos a trabalhar na redação do jornal de um amigo em comum. Apesar dos vexames que ele me causava, não conseguia me afastar dele. Sentia, por Vinícius, medo e fascínio, uma espécie de obsessão. Com o início do trabalho no jornal, vi a adolescência ir embora. Deslocado, no meio daqueles homens mais velhos, eu me refugiava, cada vez mais, em sua companhia. Saíamos todas as noites, depois do trabalho, para beber. Ele foi se afogando, rapidamente, na bebida. Confesso, que sempre senti uma forte atração pelo lado escuro da vida. Mas, depois da falsa alegria, só me restava uma forte depressão. Apesar disso, não saberia o que fazer da minha vida sem Vinícius. Tinha medo da solidão, de ser consumido pela ternura e amor que existiam em mim.

Até que conheci Márcia, meu grande amor. Imediatamente, me afastei do meu amigo e comecei uma vida nova. Ela me devolveu o sono tranqüilo e o dia. Apagou as nuvens cinzas do meu céu e pintou um arco-íris. Ela me trouxe a poesia. Depois de dois meses de namoro, nos casamos. Todas as noites, ela apagava as luzes da nossa pequena varanda e dizia: É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas. Mas, existem homens que têm medo do escuro e, principalmente, de céu. Eu era um deles.

Eu e Vinícius, aos poucos, reatamos a nossa amizade. A partir daí, começou o meu inferno. Todas as noites, eu via a minha vida se arrastando de bar em bar e escorrendo pelos copos. Passei a chegar, cada vez mais, tarde em casa, causando tristeza e desgosto à minha amada. A minha vida profissional começou a ruir. Sempre colocando o meu nome em jogo, ele começou a desrespeitar o nosso chefe, a furar as entrevistas marcadas e a chegar bêbado no trabalho. Fomos demitidos. O desgraçado exercia um forte poder sobre mim. Influenciado por ele, virei mais uma vítima da piedade e compaixão das pessoas. A que ponto, meus amigos, um homem pode chegar! Metíamos-nos em brigas, importunávamos as pessoas, lambíamos o chão, impregnando a nossa língua com toda a sujeira do mundo. Até que aconteceu o pior.

Um dia, cheguei em casa e encontrei Márcia sentada na cama, acuada, com o corpo cheio de hematomas. Os seus olhos estavam assustadoramente inchados e o seu lábio inferior tinha um corte profundo. Quando ela me viu o seu rosto perdeu a cor. Disse-me, gritando aos prantos, que ele, o maldito Vinícius, bêbado, entrou no apartamento, feito um louco, dizendo palavras obscenas e movido pelas piores danações do mundo, a violentou. Cão dos infernos! Excremento do mundo! Ah, meus amigos, senti, naquele momento, a dor de mil facadas no peito! Perdi os sentidos. Quando acordei, ela já havia partido. Ela se foi e toda a beleza deixou de existir. Ela levou a pureza e a alegria. Levou a poesia de Shakespeare, o lirismo de Camões e o encanto das músicas. Ela foi embora arrastando o tempo, o perfume e todas as cores. Apagou as linhas das minhas mãos, deixando somente uma enorme tristeza. Ela se foi e, nas primeiras horas de abandono, multipliquei por mil os meus recalques.

Eu queria me vingar! Acabar, definitivamente, com aquele lixo! Reuni todas as minhas forças e fui ao encontro do maldito. Encontrei-o sujo, bêbado, fedido. Levei o canalha para o famoso bar da linha do trem, do outro lado da cidade, conhecido por ser freqüentado por marginais da pior espécie. Estava lotado. Pedimos uma garrafa de cachaça e começamos a beber. Incentivado por mim, não demorou, para o desgraçado arrumar confusão. Falando alto, começou a provocar o sujeito da mesa ao lado.

- O que você está olhando? Quer levar porrada, seu merda?

Imediatamente, o sujeito pegou uma faca e ficou encarando Vinícius.

- Venha, seu corno filho da puta! Covarde! - insistiu.

O sujeito enfiou a faca na barriga dele, que parecia possuído pelo demônio.

-Ah! Ah! Ah! É só isso o que você sabe fazer, seu frouxo?

Foi tão grotesca a reação que o sujeito se intimidou por alguns segundos.

- Ora, pelo amor de Deus! Faça o que tem que fazer, depressa!


Feito um animal selvagem, o sujeito desferiu-lhe várias facadas, Até restar-lhe somente um fiapo de vida.
Apesar da dor, eu mantinha um sorriso de satisfação, de vitória. Com o corpo banhado em sangue, eu agüentava firme. Logo, logo, viria a recompensa. Ali, imóvel, eu aspirava o cheiro da morte. Feito um urubu aguardando carniça, eu vi a vida fugindo de mim em vermelho. A luz foi sumindo aos poucos. É na escuridão que melhor enxergamos as estrelas, pensei. Meu nome, Vinícius. Derrotei o meu maior inimigo: eu!

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